sábado, abril 22, 2006

Encontro

Naquele dia ela não acordou. E talvez por isso preferiu não olhar para o relógio, que naquele instante só poderia marcar onze da noite. E o único movimento que pôde fazer, foi, aproveitando-se do lusco-fusco do quarto, ver no espelho traços que naquele momento lembravam-lhe libélulas violetas que numa longínqua tarde de outono pensara ter visto nos olhos de uma senhora triste, num café triste. E como não poderia deixar de ser, ela só pode fazer o que lhe cabia neste dias reais. Pintou os lábios que até então eram virgens daquele rubro devasso que a noite devassa lhe exigia. E pensou o quão pura era sua devassidão. E aproveitou-se que o único intruso àquela hora era um fio pardo de luz amarela que vinha do poste da rua e penteou os cabelos como nunca ousara. E entre as sombras negras que lhe confundiam o reflexo, tirou um retrato com os próprios olhos daquela moldura que acabara de fazer. E continuando o ritual-sonâmbulo-do-real despiu-se, mas dessa vez acendeu o abajour vermelho que mantinha no criado mudo e foi realmente bonito decorar seu próprio corpo rubro, e suas perfeitas imperfeições. Quis ligar a vitrola e ouvir uma valsa, mas logo percebeu que assim fugiria das regras, e ela mesma se pôs a cantarolar sua valsa predileta, que, obviamente, ela inventava durante seu baile. E foi a primeira vez que percebeu que a leveza não era assim algo tão sofrível, como insistiam em lhe provar. E depois de ter um breve contato com o não-peso, sentiu que era hora de sentir as arranhaduras do chão, para que não se contentasse tanto com o ar. E sentou-se novamente diante do espelho, que insistia em lhe apresentar libélulas violetas. Sentiu-se então apta a continuar seu sonho e pensar nos três amores de sua vida. Viu o primeiro e após uma lágrima curta, sem muito sabor, e até mesmo inadequada, que as sombras do reflexo convenientemente ocultaram, resolveu guardá-lo junto às suas tantas promessas na terceira gaveta de sua cômoda, pois pensou que dali há alguns anos, só poderia achar graça das lágrimas gastas com frases feitas por alguém que não teria nem a coragem de sonhar com o mundo prometido. Observou que o reflexo lhe mostrava um sorriso imperceptível, o que lhe encorajou a partir para o segundo. E a única coisa que sentiu foram exatos três minutos de cócegas na barriga. Ficou feliz com aquilo, pois sempre amou sentir cócegas na barriga, mas percebeu, que depois das cócegas, o que vinha era um vazio, e de vazios, já lhe bastavam aqueles que enxergava alguns dias, quando acordava no meio da noite, e ao acender a luz para ver se ela ainda absurdamente existia, o espelho lhe devolvia um par de olhos vazios. Arrepiou-se por um instante, mas viu que naquele momento o que via eram dois olhos imensos, capazes de engoli-la. Decidiu então manter o segundo em algum canto, para que nesses momentos de frieza, quando não temia seus próprios pensamentos, se lembrasse dele e por três minutos se aquecesse com as cócegas na barriga. E afinal pensou no último, que numa tarde escura, talvez a tarde mais escura que ela já viveu, amarrou os sapatos sujos e lhe disse que não tinha mais coragem de contaminar o mundo colorido dela com suas aflições em preto e branco. Nesse momento ela evitou o espelho e tentou acordar, mas percebeu que seu sonho era real demais, e em sonhos reais não existe o despertar. E chegou a conclusão que do terceiro, o que poderia fazer era aprender a não se contaminar tanto pelo caos das cores para em alguns momentos assumir e amar o que lhe fosse preto e branco, por mais que aquele que lhe mostrara o preto e branco nunca mais voltasse. Olhando então novamente para o espelho, viu que as libélulas violetas começavam a se dispersar e que já estava despida dos três e sentiu que era hora de colocar seu vestido de baile. Estava pronta. Tinha um encontro consigo mesma.

*nian.pissolati.

segunda-feira, abril 17, 2006

O nome disso

Um vocábulo que foge do meu repertório. Na mala aberta e revirada, pedaços de sensações perdem os nomes e vestem outros para o meu esquecer.

O apelido do comum. A talidade do prosaico que me alfineta, como por uma brincadeira de mau-gosto, em busca de um sentido verdadeiramente relevante.

Como pode a aparência de algo que não me lembro mais e que significa algo tão costumeiro, quase dominical, se apossar de vários minutos dos meus recentes dias?

Eis o contraponto: o nome que escapa do seu dono, a coisa mais simples das coisas mais simples, que agora, escapa da bagagem empoeirada em busca de uma lembrança que, quando lembrada, se lembrada for, espera-se saciar a agonia sem nome que me faz ranger os dentes.

Tal léxico quer saltar alto da minha boca sugerindo um inacabado “ver...”. Tento invocar o que falta, mas parece-me andar por longe bastante desta mala aberta esquecida.

Curioso, eu diria. “Ver...” . A sugestão de um olhar perdido e inacabado. Um pedaço de palavra tão perto, assim como uma mão que alcança a mala entreaberta que se arrasta, deixando pelo caminho resto de coisas.

Um pedaço aqui, uma peça acolá. Algumas letras atrás, esquecidas num caminho, enredadas por um ambiente tão ver...

Como é mesmo o nome disso?


Lucas dos Anjos

domingo, abril 09, 2006

cinza

.e ele pensou que sua pequenez não cabia na grandeza daquele mundo.

sábado, abril 01, 2006

Inacabado

, e diante de todo o infinito que cabe em seus olhos seria demasiado arriscado eu tentar te explicar meu mundo. Perdido em pequenezas pessoais seria grande a viagem para te conduzir por caminhos tortos com o perigo do destino não ser lá o que se esperava.

E lhe apresentar tudo que está e é seria loucura, pois o universo que você possui talvez seja muito denso para que você creia no espontâneo-não-justificado. E o que eu consigo lhe projetar é apenas um mínimo indício de tudo o que eu queria ser, que eu poderia ser, mas...

Poderia falar-te tudo ao pé do ouvido, em meio às sombras daqueles que se encontram neste prolongado ínterim. Mas é tão clara a imagem falsa que estas palavras lhe produziriam que a minha auto-punição se torna justificável. Mesmo crendo que na realidade isso tudo seja apenas mais um dos tantos escudos de que agora começo a me munir, diante de olhos que vêem além, prevendo já uma seqüência de ações que podem ser cortadas pela raiz.

O triste é saber que você nunca irá ouvi-las, porque me expor à sua não-querência seria uma queda muita alta. Não que esta queda seja ligada diretamente a você, mas antes a tudo aquilo que acredito, mesmo sendo minhas crenças não tão confiáveis.

Sabe o que é?

É que eu, inadvertidamente,

*nian.pissolati.