quarta-feira, dezembro 14, 2005

A Janela

Não poderia precisar a quanto tempo ele estava lá. A maçaneta e as dobradiças da sua porta já não se lembravam do seu ofício tal qual seus ossos e juntas há muito em desuso.

Nesse dia ele acordara diferente dos outros dias. Nesse dia olhava em detalhe para o resto do seu corpo inerte. Além da vergonha que já sentia, a costumeira, daquela massa magra e gorda ao mesmo tempo, ele sentia dores diferentes das que o acometiam no meio de quase todas as noites. Ou seriam dias?

No seu campo de visão se acomodavam à sua mesa empoeirada, cheia de recortes, uma xícara suja, um cinzeiro sem visitas e um porta-retratos velho e vazio. Ao lado da cama uma garrafa de água morna e suja e embalagens de balas e remédios baratos. Alguma revista.

A última viagem da qual se lembrava era do translado da cama ao banheiro. Fatigante. A última visita que recebera foi a de um senhor que batera à sua porta procurando alguém que, para ele, não existia. Voltava pra cama animado em não render assunto.

O vento que entrava pela janela entreaberta cismava em jogar aqueles papéis da mesa ao chão. Ele observava como se pedisse ao vento pra ventar em outro lugar. Franzia a testa e resmungava.

Inflou os pulmões e decidiu levantar-se de assalto. Três tentativas até erguer-se e se arrepender em dor. Sentou à beira da cama e contemplou os papeis ao chão, derrubou a garrafa de água com seu pé destreinado. Franzia o corpo todo.

Enfim, levantou-se. Pegou a garrafa e mirou à cozinha em um passo lento. Olhava sem querer para os dedos do pé ao caminhar. Entre um tropeço e outro, alcançou a pedra da pia onde sentou a garrafa. Esticou o pescoço. Rodou a cabeça. Com as mãos sem jogo, tocou a cortina que se debruçava em sua única janela. Abriu lentamente a janela que lhe revelou um sol de janeiro. Foi quase um flash que o cegava.

Depois de um minuto de acomodação frente ao incômodo as coisas começavam a se definir. Passava por ele um velho e seu jornal hipócrita. Uma criança ruiva caia de bicicleta. Um ou outro pássaro pousava no jardim do outro lado da rua. Uma moça se fazia ver extravagante em seu vestido roxo, que coisa!

Procurou o ar. Olhou pro céu azul tinto em rosa aqui e ali. Exitou em fechar a janela, entretanto o fez. Sentiu-se bem. Passou a mão na garrafa de água. Encheu. Voltava pelo mesmo caminho quando olhou pros papeis ao chão e resolveu parar. Envergou-se e apanhou todos e isso lhe custou um urro de dor. Arrumou-os novamente sobre a mesa. Entre eles um retrato perdido. Fitou-o por alguns minutos. Imóvel. Franzia o corpo novamente. Resmungava diferente. Colocou-o com esmero no porta-retratos. Caminhou até a porta velha, descascada. Girou a maçaneta bruscamente e com pouca força abriu um pequeno ângulo. Como rangia! Como se poupasse por pena a porta, resolveu desfazer o que havia feito. Fechou novamente.

Voltou pra cama mostrando em seu rosto um sorriso beóceo. Um mal-estar leve da dor que ainda restava.



Lucas dos Anjos

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