quarta-feira, dezembro 14, 2005

Tempo de chuva

Todas as ruas estavam encobertas por folhas tenras. Não haviam caído por velhas e sim porque choveu e ventou mais que devia.
A minha impressão nessa manhã era de que nada ou ninguém conseguiu se isentar do que a chuva trouxe consigo. Nesse dia ele compartilhava com tudo o gris do dia. Ele havia chovido. Ele era cinza por dentro
Dias cinzas o encantam.Fazem-no olhar oblascente para a cidade e seu ritmo. Ele caía no vazio de uma contemplação opaca, curta, uma hipnose estética. Pensou em sair de casa. Um café, um jornal...
No caminho olhava pro chão e se indagava quais eram mais numerosas. As folhas caídas ou as pessoas que se irritavam com a morbidez do dia? Pergunta sem propósito - pensava. Olhava para os carros, um ou outro tinha pressa. Quem teria pressa aquele dia? Nem mesmo os garis que varriam as ruas. De mais a mais, deviam engrossar o coro dos que agradeciam as grossas nuvens. Disparate! Talvez os únicos que assumiam a leveza daquele dia eram de duas categorias de pessoas. Os garis e os que, como ele, se dedicam ao ócio e à inércia. O peso mais brutal que conhecera presume-se ser o de um caderno grosso ou um livro bem costurado. Escória.
Andava a um centímetro do chão descendo a rua Castro rumo ao café Castelo, que de castelo não tinha nada se não fosse pelo seu Jairo dono rei da espelunca suja que ostentava seus cem quilos molhados de suor. Tinha uma voz oleosa e mão de dar nojo.
Ao chegar pediu uma média, um cinzeiro e fósforos. Sacou o jornal do dia da pasta e, sem muita vontade, correu os olhos sobre as letras maiores. Na verdade aquilo não o excitava. Não passava de um ritual de sacrifício do tempo. Cada letra a mais, menos segundos do dia. Seus olhos obedeciam a cadência da leitura, linha por linha, mas o entendimento negava-lhe presença. Seus ouvidos reparavam conversas misturadas, atravessadas por tosse, por gemidos, gotas da torneira que caiam e uma música irritante que Jairo rei mostrava orgulhoso ao freguês mais animado.
De quando em quando erguia a cabeça e analisava o perímetro. Alguma mudança. Pessoas saiam, mudavam de lugar, outras entravam. Todas desinteressantes. As mesmas desconversas. Agora importava outro café no lugar daquele frio.
Ele olhava através da meia porta aberta que ainda restava descer. Olhava a rua e policiava seu ritmo. No fim o mesmo dia cinza. As pessoas pareciam as mesmas só que com roupas diferentes. Os garis, eles não. Empenhavam um dinâmica diferente. Vaivens, assovios, cantorias. Matavam o tempo. Eram cúmplices na empreitada do dia.
Ao fim da tarde ele já havia permutado as letras do jornal. Rasgava as pontas e brincava de acertar o cinzeiro, a xícara. Uma ou outra caia ao chão, mas quem se importava? Bons modos naquele dia, naquele lugar? Ora. Nenhuma palavra ele disse a alguém. Nenhuma palavra alguém disse a ele. Não que ele tenha escutado. Não que merecesse atenção. Até que o último arranjo aconteceu naquele café amargo. A cadeira ao lado dele arrastou pelo chão assoviando. Pediu um café e um pão com uma voz segura. Firme. Clara. Jairo oleoso o serviu sugerindo pressa. Ele olhou para o lado e percebeu que aquele lugar, a cena do crime, era refúgio dos dois cúmplices. Ele e o gari.
O trabalhador o cumprimentou satisfeito. Um sonoro "boa tarde". Ele devolveu um alçada de sobrancelhas e um desvio de olhar para a porta. Ainda ventava mas o jornal acabara. O trabalho do dia também acabara para o braçal. Não havia outra opção senão prestar atenção na conversa do Seu Jairo com o sujeito. Conversa aquela que cheirava a óleo e a suor. Resmungos fétidos.
Não se aproveitava nada daquele papo e ele olhava o gari como quem dissesse: " sei o que você fez hoje com o tempo!". Mas nada dizia. Somente olhava e desviava o olhar. Esse era o novo jogo.
Ele voltou para seu último café. Tentara desviar a atenção para o que realmente importava. O dia. O tempo. Escurecia. Aquele fora o café mais rápido do dia. Lançou a mão no bolso olhou o relógio e colocou moedas em cima no balcão. Alçou novamente as sobrancelhas a saiu de assalto. Apertava o passo como lhe apertava o peito uma sensação muito estranha. Uma raiva ansiosa. Loucura de chegar em casa e voltar pra onde não deveria ter saído naquele dia. Cama e cigarro.
Na sua casa também ventava. Havia um sinfonia de rangidos. Janelas e portas, dele e dos vizinhos brigavam com o vento. Aquele som tirou seu sono. Ou seriam os cafés? Não se importou com aquilo. Ficaria feliz mesmo sem dormir, só queira casa e cigarros.
De fato o sono não lhe visitou. O vento não parou e anunciou a chuva pela manhã o que lhe deixou satisfeito. Outro dia daquele! Às seis da manha colocou os pés na rua. Era a mesma rua com as mesmas folhas. Eram os mesmos carros na mesma velocidade. Eram as mesmas pessoas que eram as mesmas ontem.
A menos de uma passo de casa resolveu voltar. Entrou em casa retirou os sapatos e sentou à cama.
Aquele era o mesmo dia. Aquele era o mesmo tempo morto. Esperaria outro motivo pra sair de casa.


Lucas dos Anjos

Um comentário:

Ortega disse...

esse texto é mto propício pra esses dias de chuvinha ordinária.