segunda-feira, dezembro 19, 2005

Sobre vapores e amêndoas

Distribuo por sobre a cama alguns pequenos pedaços de tudo aquilo que fomos nós, alguns recortes antigos e carcomidos de nossas caras, de nossos gestos, num amontoado de papel amarelado, que aos poucos perde seus sinais de vida e deixa que a nostalgia os invada por completo, com seu cheiro de mofo, de passado, aquele cheiro dos ausentes que não se tocam mais e que todo dia, em uma dada hora, a mesma, sempre, lembram de algum episódio em que riam de amenidades. Distribuo minuciosamente bem todos os episódios, todos os momentos e realço em determinada hora os dias em que estivemos mais felizes, quando seu caminhar por sobre o tapete da sala era sublime, e seu rebolar tão natural que nascia no ventre e morria nas coxas me fazia pensar que o mundo não é lá tão importante diante de algumas horas ao seu lado, sob os lençóis verdes que você fazia questão de nos embrulhar. E foi inevitável pensar no doce cheiro de amêndoas, que tomava nossa casa, ali pelas três da tarde, dos sábados calorentos, quando você saía do banho e religiosamente se secava ainda no box, cantarolando numa voz-doce-muda uma canção antiga e ainda você brincaria com o vapor que insistia embaçar os vidros, fazendo desenhos inimagináveis, e eu, enquanto isso, deitado na (nossa) cama fumava um cigarro e me enganava fingindo ler algum livro, quando na realidade só traduzia em pensamento aquilo que se passava no chuveiro, e você ainda nua, depois de secar seu corpo, passava o creme por seu corpo, com o doce cheiro de amêndoas, que se misturava ao vapor, e aos poucos tomava nossa casa, nosso pequeno castelo construído de palavras bonitas e gestos que por si só nos explicavam, e eu podia ver, na parede sua silhueta, que dançava com o movimento do vapor e luz, e acreditava, realmente acreditava, que éramos eternos. Recorto nossos recortes na esperança de entender-nos um pouco mais, mas em um segundo percebo que tudo o que fomos nunca vai ter explicação e que na verdade estou é desistindo de todas as lembranças, de todas as promessas, de nós dois, porque na verdade viver sabendo de tudo aquilo fomos é doloroso demais, e o que foi, deve ficar onde está, e não preciso trazer-te à tona, ainda mais agora, quando meus pensamentos se mostram tão densos, de uma densidade que na verdade não é minha; mas minha leveza, com os anos, esvaiu-se, e seria inútil tentar recuperá-la, agora, a princípio por dois motivos, o primeiro, porque é claro, nunca eu conseguiria ter novamente a leveza dos vinte e poucos anos, e a segunda, porque na realidade, não sou mais tão ameno, nem pretendo ser, porque alguns anos de angústia serviram para que meu olhos conquistassem uma dureza impossível de se retirar e qualquer movimento que tente o contrário só resultará em mais dureza, e acredite, dessas questões, pelo menos por hora, prefiro me eximir. Deixo nas sobras de meus recortes, por sobre o verde desbotado dos lençóis outrora tão vivo algumas horas que estão incrustadas de tal maneira em meu corpo que retirá-las significa sangrar, sangrar sem fim, até que o sangue fique ralo, tudo fique ralo e eu já não tenha tanta força para lembranças e devaneios. Luto contra, mas é inevitável lembrar de quando o vermelho era diferente para nós, e só nós sabíamos todos os segredos e beleza que um vermelho pode guardar, tantas músicas, sussurros e transpirações que o (nosso) vermelho pode ter, mas que claro, hoje em dia, eu não sei mais como vê-lo assim, e ele é para mim como uma lembrança de infância, como um cofre onde eu guardava meus soldadinhos de chumbo, mas que hoje em dia esqueci seu segredo, e então só posso o ver por fora, e lembrar as tantas coisas bonitas que ele guarda, mas que são inatingíveis. Recuo um pouco os recortes e penso em queimá-los, enxotá-los daqui pra nunca mais, mas também é uma tarefa difícil, essa de assumir o papel de exorcista de nossa vida, mas não quero também apelar para um sentimentalismo barato, e citar por horas nossas cartas trocadas, nossas lagrimas traídas, seu gosto em minha pele, e sua respiração em minha nuca, seu oxigênio em minha boca. Não. Prefiro agora me tornar tudo o que mais detesto e reconstruir minuciosamente todos os minutos daquele dia chuvoso de novembro, quando você não tinha mais as pequenas bolas pretas de seu olhos, mas sim um cinza indecifrável que simplesmente me despedaçou e ao pronunciar um ‘vou-me embora’ tão seco que serviu para acabar com tudo aquilo que éramos, e tenho que lembrar disso e tenho que perceber que sua frase, naquele momento, na verdade foi muito maior do que tudo aquilo que eu esperava, e foi um golpe seco, surdo, suficiente para quebrar nosso pequeno castelo de vidro, que ficou então estilhaçado, e entre os cacos, ali fiquei, e na verdade, só agora, depois de alguns tantos anos, tive a coragem de abandonar.

nian.pissolati

7 comentários:

Letícia disse...

"Um copo de cólera", mas com cheirinho de amêndoas.
(se é que vc me entende...)

gosto muito. principalmente das cores: o verde com o vermelho e tudo que vem com eles.

maisoumenando nadismos disse...

amigo, vc deixa esse blog mais bonito. Amo. Lucas dos Anjos

Anônimo disse...

Amo

Anônimo disse...

até os erros de português.
eu vou alí fumar.

Anônimo disse...

A caixa que já não pode ser aberta. E só pode ser vista de fora. Muito bom. Sincero. Chegou em mim e me deixou aquele triste bonito.
Dalila

Anônimo disse...

Sinestesia é coisa linda de Zeus!
Costoli

Anônimo disse...

"seu gosto em minha pele, e sua respiração em minha nuca, seu oxigênio em minha boca"

fim.

pq o boné é o prelúdio do esporro!